domingo, 21 de dezembro de 2008

evitar dobrar os cantos das páginas



...dessa noite, entre as linhas ilegíveis, lia-se:

"(...) hoje estou só cansada...

(...) houve homens que me ofereceram cigarros e perguntavam-me 'não sabe que é muito bonita?', 'quer um cigarro para o seu companheiro?', que é uma forma grosseira de querer saber coisas intocáveis. Não, não sei. Estou cansada, meu querido cobarde, e afinal, que importaria isso se na verdade,não entro em nenhum dos seus romances? (...) Todas as praças da cidade são estranhas e havia uma estátua de uma mulher no meio das árvores e um frio que invadia e cortava, vindo de fora, bruto e imenso. Todas as praças iluminadas e eu quase fiz um esforço para fazer parte de tudo. Mas que importa isso se não entro em nenhum dos seus romances? Se outro me escrevesse, provavelmente você gostaria de me ler, aí, na distância perfeita e resguardada da sua paciência individual, dessa sua espécie de auto-suficiência sustentada numa tolerância cruel. Esse outro diria ' a rapariga descia a avenida, cantando baixinho, respirando unicamente pelo nariz, até se sentir conduzida unicamente pelo desequilíbrio provocado pelo ar frio e o excesso de oxigenação', qualquer coisa assim. Acharia graça e continuaria a ler. Depois descreveriam-me até uma praça junto de um parque, sempre de noite. E aí todo o capítulo se teceria dentro de mim, da minha forma encantada e dos meus pensamentos acerca de um homem de quem eu fugia, um homem que nesse momento estaria talvez até a escrever sobre outra qualquer mulher, desenhando na sua imaginação encontros e tardes ternas e convites meigos. E aí, se ainda continuasse a ler, talvez então pensasse que era muito errado deixar assim uma mulher correr para outra cidade...'que raio de homem faria isto', 'que belo que seria se ele a surpreendesse nessa cidade ou mesmo dissesse que todos os convites e tardes idealizadas eram, afinal, para ela mesmo'. para ela. (...) talvez até achasse um mau romance, mas quisesse aproveitar a personagem que o cativara para lhe dar outro fim mais conforme as ideias que tem, tão lindas, acerca de encontros românticos - isto, claro, dentro da sua própria ideia de romantismo ou de amor. (...) de todas as coisas que hoje consigo dizer, a que mais me dói é a de já não ser digna das suas histórias. dos seus sonhos. e estou cansada (...) que bela descrição daria o meu rosto assustado e insolente. que bela seria eu nos seus jardins e nos seus museus. ao som da sua música e das suas palavras, se me quisesse chamar. mas eu iria estragar tudo, não é meu querido idiota? eu estragaria de morte a sua imortalidade (...) convide-me. convide-me (...)"

aos tombos, a cidade constroí-se, na noite dos Homens. algumas linhas permanecem ilegíveis. para sempre.


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